Quando me lanço numa reflexão sobre a dimensão da arte teatral, e as diversas formas como esta age sobre os outros, surge-me a necessidade de convocar dois pontos:
O primeiro: a capacidade do Teatro de perpetuar a memoria individual e colectiva das sociedades.
O segundo: o sentido e a necessidade da partilha.
O teatro transporta na sua Historia essa urgência de trazer aos outros, ao colectivo, perguntas e respostas, os medos e as conquistas da Humanidade, a evolução e as fundações das sociedades, o sagrado e o profano, as bravuras e os medos do Homem, com um sentido muito claro: o de comunicar, o de traçar os caminhos ideológicos, sociais e artísticos dos tempos e das gentes.
Quando pensamos na importância do mito no teatro e na humanidade percebemos como estes dois são inseparáveis: o mito apresenta-se como elemento fundamental para um reconhecimento da tão necessária identidade tanto na vida como no Teatro.
Conservamos assim a tal memoria colectiva e individual, matéria de valor superior para a construção da obra de arte e das sociedades.
Observamos então, que de Sófocles a Brecht, de Gil Vicente a Tchecov, de Samuel Beckett a Koltés, mergulhamos a fundo nas sociedades do seu tempo, nos seus quotidianos, nas suas ânsias de ruptura, de procura de uma identidade e das suas características, em suma nas tais memorias colectivas e individuais, no seu olhar sobre o mundo.
Quando penso no termo Inclusão no Teatro, penso então em primeiro lugar, nesta necessidade de estruturar no meu teatro a minha ideia do mundo, aquilo que pretendo questionar e tentar responder, convocando para isso a minha realidade pessoal e colectiva, trazendo para o meu teatro os livros, os filmes, as viagens, a musica, os espaços e o mais importante: as pessoas.
Fundem-se assim, universos distintos, pontos de vista, Dinâmicas e posturas dispares sobre o mundo em que vivemos e é nessa realidade que provocamos a discussão que fazemos nascer as questões.
E agora, convocando um pouco o meu quotidiano (gosto muito de utilizar a expressão quotidiano; alguém que muito admiro pelo seu caminho profissional e pessoal, o encenador e director artístico do Teatro da Comuna o Professor João Mota, declara muitas vezes, que o actor, o criador, tem que ser um “Militante do quotidiano”; é esse sentido atento ao nosso dia a dia, por vezes ás coisas mais simples e banais, que vai estruturando o nosso baú das memorias, das informações, que servirá mais tarde o nosso processo de criação e de partilha Humana e artística – Não nos podemos desvincular dos outros e do seu mundo), é inevitável trazer até aqui o projecto Crinabel Teatro.
O Grupo Crinabel Teatro é um colectivo com 23 anos de existência, criado no seio da Crinabel, Cooperativa de Ensino Especial, e que tem vindo ao longo do seu percurso a desenvolver um trabalho artístico com jovens portadores de deficiência mental, procurando potenciar as suas capacidades artísticas, pessoais e sociais. Este projecto tão singular e pioneiro no nosso país, tem vindo cada vez mais a assumir-se como um objecto de profunda validade cultural em Portugal e no estrangeiro, tendo desenvolvido inúmeros projectos Europeus com Itália, Espanha, Inglaterra, e realizado espectáculos um pouco por todo o mundo. Para além do trabalho de criação realizado dentro deste colectivo, é com satisfação que os actores deste projecto têm tido cada vez mais a possibilidade de se juntarem a outros projectos artísticos, tanto no cinema, no teatro ou na televisão.
Este projecto nasceu como um atelier de expressão dramática, dentro da Crinabel, uma instituição de solidariedade social, e ao longo dos quase 25 anos de existência este colectivo tem vindo a estruturar de forma mais sólida as suas escolhas artísticas e os seus objectivos de intervenção.
Nos primeiros anos, o mais significativo era realmente, o lado social deste projecto.
De forma pioneira, utilizamos o teatro como veiculo de aproximação a uma realidade, que como podemos imaginar à 25 anos atrás, estava confinada na maior parte dos casos aos muros das instituições criadas para receber pessoas portadoras de deficiência, proporcionando um aproximar da sociedade à realidade da deficiência, procurando assim desmistificar o olhar sobre a diferença.
Há muito que a inclusão das linguagens artísticas nos programas curriculares das escolas é tida como ponto primordial e de excelência na formação das crianças e jovens. É claro, e está comprovado pelos técnicos no terreno, que estimular o acto criativo junto desta população é de suma importância para um crescimento mais equilibrado, para um sublinhar mais claro do seu ser sensível e racional, tornando-se um elemento desbloqueador da relação pessoal e inter-pessoal, provocando um reconhecimento mais claro do eu (nos campos emocional, motor ou racional) e dos outros.
A musica, o teatro, a pintura, a dança e muitas outras formas de arte, são utilizadas como ferramentas durante a formação de uma criança ou jovem. Mas muitas vezes vemos aplicadas estas ferramentas, também no desenvolvimento pessoal e social de um adulto. Em suma, em qualquer altura do desenvolvimento do Homem, o instinto criativo pode e deve ser estimulado, concretizando nas diversas faixas etárias, realidades sócias ou em qualquer outro contexto, uma solidificação dos instintos, do carácter, da ética, do ser Humano.
No desenvolvimento da pessoa portadora de deficiência terá também que existir a preocupação de aplicar a arte como objecto de educação e não apenas de ocupação.
Quando falamos em deficiência é importante perceber que esta se desdobra em diferentes nomenclaturas, diferentes características, que acarretam em cada caso, em cada deficiência, diferentes limitações.
Não sou de todo a pessoa indicada para esclarecer todas estas diferenças. Venho de uma formação artística e as noções que tenho adquirido acerca da deficiência mental, advém do contacto com as pessoas que me acompanham no projecto Crinabel Teatro, com suas respectivas famílias e com os restantes técnicos especializados na área da deficiência, que também integram este projecto.
O que tenho percebido nos últimos 8 anos de trabalho com o grupo Crinabel Teatro, uma companhia teatral composta por actores portadores de deficiência, é que a linguagem artística que abraçamos, o teatro, é de facto e em primeiro lugar um elemento crucial na relação destes jovens com o resto da sociedade. Quem trabalha com populações marginais (á margem) debate-se muitas vezes com esta grande dificuldade, a de romper os muros que rodeiam estas realidades, de modo a potênciar um relacionamento social, uma partilha e aceitação do que está à margem porque é diferente, ou melhor, é minoritário.
É interessante partilhar o desenvolvimento destes jovens no campo motor, intelectual, de relação com os outros, assistindo a um aparecer de um espírito critico, de um sentido de responsabilidade, de uma clara noção daquilo que desejam e do esforço a fazer para o conquistar.
Os espectáculos eram então apresentados fora dos muros da instituição, em parceria com os espaços teatrais da cidade, do pais e a partir de 1988, de outros países, que começavam também a mover esforços para criar uma espécie de rede, que reunisse estas práticas artísticas e sócias.
Neste momento os nosso objectivos tornaram-se mais abrangentes.
Procuramos não só, manter essa função social, que como comentai no inicio, parece-me na verdade transversal a toda a história do teatro, como também olhamos com outra preocupação para o investimento na transmissão de ferramentas de acção artística, aos nossos interpretes, procurando que estes, a seu tempo, ao seu tempo, adquiram uma consciência sobre as suas acções e opções pessoais e artísticas.
No sentido do colectivo, temos vindo a polir as nossas opções cénicas, procurando responder a um propósito, que nos leva à cena: Valorizar o trabalho do actor e da sua relação com o espaço e com o seu discurso.
Tenho por em de sublinhar que estes objectivos tem sido cumpridos com o apoio logístico e financeiro de alguma entidades particulares e estatais que tem permitido dar continuidade e um maior rigor e ambição ás propostas que vamos levando a cabo.
Todas as actividades planeadas até ao final de 2011, terão em vista a comemoração do 25º aniversário do grupo Crinabel Teatro e serão financiadas através do programa de Desenvolvimento Humano, da Fundação Calouste Gulbenkian.
Gosto portanto de pensar, que em vez de ser o Teatro a promover e proporcionar um aproximar desta realidade e destas pessoas, (ainda deslocadas da Dinâmica social activa), ao sistema social e á sua convenção de normalidade, são estas pessoas que proporcionam ao teatro e à sociedade, a oportunidade de encontrar um olhar mais pleno sobre a existência.
Procuro assim reflectir sempre, sobre aquilo que podemos dar e proporcionar ao outro, mas também sobre tudo aquilo que podemos receber, no domínio Humano.
Assim quando falamos de Teatro e Inclusão, falamos no meu entender, na possibilidade de fundir realidades, culturas e pessoas, potenciando a riqueza da diferença, de uma pluralidade de formas de estar com o outro e com o mundo.
Naturalmente os núcleos em desvantagem social, e com mais dificuldades de inclusão, beneficiam de uma possibilidade de upgrade, aproximando-se da massa social, promovendo as suas capacidades, qualidades e defeitos pessoais e profissionais.
No caso do projecto da Crinabel, é o Teatro esse veiculo de inclusão de aproximação e reconhecimento do colectivo composto por pessoas em desvantagem social, na tal Dinâmica, no tal dia a dia, que por vezes não é nada militante de si, e fecha-se no que está mais próximo.
Um professor que tive na Escola Superior de Teatro e Cinema, disse-nos uma vez durante uma aula, que quando comprou o primeiro computador, ligava-o, esperava que ele arrancasse, procurava o programa que pretendia e quando por fim, tudo estava operacional, iniciava o trabalho.
Hoje em dia, e falo também por mim, ligo o computador, e começo logo a pressionar o botão de “Enter”, para que tudo surja rapidamente no monitor.
Isto para dizer que o nosso tempo interior acelerou, não é o mesmo de há 20 anos atrás, a vida corre mais rápido e nós fomos também passando pelo processo de inclusão no avanço da dinâmica social.
Quem, por alguma razão não acompanha com a mesma facilidade esta corrida diária que é a nossa existência, precisa realmente desse entendimento por parte dos outros da noção de tempo.
O que me propôs reflectir em conjunto com todos vocês durante este período de tempo, não sei se foi a minha noção de Teatro e Inclusão.
Julgo que aquilo que neste momento do meu percurso pessoal e profissional tenho necessidade de partilhar é a noção de respeito e consciência sobre o outro, o sentido com alguma esperança ainda, de não nos esquecermos da tal memoria colectiva e individual, do falado sentido de partilha, que abraça a identidade de cada um de nós.
No meu entender, para irmos clarificando e continuando a estruturar essa ideia de inclusão, é necessário reequilibrar o nosso universo racional com o sensível. É urgente permitir que a nossa sensibilidade faça também parte da comunicação com o outro, nivelando-a com a destreza racional cada vez mais presente nas pessoas do nosso tempo.
Não nos basta a informação cultural, a fruição do conhecimento, o domínio sobre as tecnologias e os infinitos estudos científicos. Necessitamos de reencontrar o toque, a atenção sobre o outro, o estar presente com o outro, o contacto visual de qualidade com o que nos rodeia, a capacidade de escutar, a ânsia de conhecimento pelas coisas simples e comuns, que estruturam o dia a dia.
Mas na verdade penso se isso será possível... não sei se a maquina social que o Homem construiu, e os valores que daí advieram, permitirão nivelar esses dois universos.
Cabe então à arte, continuar a convocar essa ânsia pela sensibilidade, pela criatividade de cada um de nós, estimulando o nosso imaginário e confrontando-nos com os nossos erros, com as nossas vitórias, com aquilo que ocupa ao nosso lado o mundo e que por vezes nem damos por isso.
Enriquecer a nossa identidade com a identidade do outro.
Seminário - Comunicação, inclusão e qualidade de vida: Desafios e Propostas
Tema da Comunicação: O Teatro e a Inclusão
Orador: Marco Paiva
Universidade Lusófona
24 de Julho de 2010
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